Por Raquel Rolnik
A imprensa paulistana noticiou ontem a assinatura de um
protocolo de intenções entre a Prefeitura de São Paulo e o Governo do Estado
para a produção de 20 mil moradias na região central da cidade, utilizando
inclusive a reforma de edifícios vazios. O governo federal entrará no projeto
com os financiamentos do Programa Minha Casa Minha Vida, e os governos estadual
e municipal com recursos complementares para viabilizar essa produção.
Além de reformar imóveis abandonados ou sem uso, o projeto
prevê a criação de imóveis mistos, através de PPPs (parcerias
público-privadas), com comércio no térreo e moradia nos demais andares. De
acordo com reportagem do Estadão, das 20 mil unidades, 12 mil devem ser
destinadas a famílias que ganham até cinco salários mínimos. Também seria
reservada uma cota aos movimentos sociais de moradia. Estão incluídos na área
do projeto os bairros Santa Cecília, Barra Funda, Bom Retiro, Pari, Brás,
Mooca, Belém, Cambuci, Liberdade e Bela Vista.
Sem dúvida a iniciativa é muito positiva e poderá beneficiar
milhares de pessoas que trabalham na região central e hoje moram em locais
distantes, gastando horas de deslocamento entre a casa e o trabalho. Mas há
alguns desafios – nada simples – que precisam ser enfrentados para que a
implementação dessa intenção declarada de fato dê certo.
Em primeiro lugar, embora tenha sido afirmado que 12 mil
unidades serão destinadas à famílias com
renda entre 0 e 5 salário mínimos, é importantíssimo também determinar
quantas unidades serão destinadas para famílias com renda de até 3 salários
mínimos, já que é nessa faixa que há maior dificuldade de acesso à moradia. Na
legislação de São Paulo, a chamada “Habitação de Interesse Social” (HIS), que
inclui a faixa de renda de até 6 salários, deixa uma grande margem para que as
famílias das faixas mais baixas – e, portanto, muito mais difíceis de atender –
fiquem de fora. Por outro lado, a chamada “Habitação de Mercado Popular” (HMP)
chega até 10 salários mínimos de renda familiar mensal, que, em função da
valorização recente do salário mínimo, acaba sendo uma faixa que poderia ser
facilmente atendida pelo mercado.
Portanto, uma revisão dessas definições é mais do que urgente
para que possamos definir com clareza os percentuais para cada segmento, as
misturas possíveis e o nível de subsídios necessários para cada uma das faixas.
Particularmente importante é garantir um bom percentual para as faixas de 0 a 3
que, em São Paulo, estão totalmente excluídas da oferta atual. É preciso
lembrar, aliás, que a melhor equação é sempre a mistura de diversas faixas de
renda, incluindo famílias com renda de 0 a 3 salários, de 3 a 6 e até mais que
6 no mesmo empreendimento. Isso já ocorre em varias cidades do Canadá e dos
Estados Unidos e, apesar de arrepiar a cultura segregacionista da produção
imobiliária brasileira, é a equação mais sustentável sob todos os pontos de
vista.
Outra questão importante é enfrentar os obstáculos que
envolvem a reforma de prédios antigos, hoje inviabilizada inclusive em função
dos códigos de obra e de segurança, que exigem padrões impossíveis de se
atingir com algumas dimensões e características desses imóveis. É necessário,
portanto, construir uma regulação específica voltada para a reforma e
reabilitação de imóveis no âmbito deste programa. E um desafio correlato é
conseguir fazer isso dentro das regras do programa Minha Casa, Minha Vida, que
hoje tem normativos completamente baseados na construção de habitações novas,
não contemplando as especificidades de uma reforma.
Enfim, não são poucos os desafios. Mas, considerando a
necessidade de produção habitacional em áreas centrais da cidade de São Paulo,
sem dúvida a parceria entre as três esferas de governo é muito positiva e
bem-vinda. Vamos torcer pra dar certo.
Raquel é urbanista,
professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia
adequada.
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