Do blog Vi o Mundo
No começo deste ano eu estava em Liverpool à procura de um
sonho perdido, os Beatles, e me deparei, talvez não por acaso, pois o destino
tem razões que a própria razão desconhece, com a dura realidade tratada no
Museu Internacional da Escravidão, inaugurado em 2007.
Várias coisas me impressionaram naquele local, sobretudo a
menção honrosa feita ao Brasil, como tendo sido o último país das Américas a
eliminar a escravidão, embora, até hoje, como bem sabemos, não tenha eliminado
o trabalho escravo. Além disso, impressionei-me com um poema refletido no chão,
atribuído a um pastor, de nome Martin Niemöller, que foi escrito na Alemanha
nos tempos do nazismo, com o seguinte teor:
Quando os nazistas levaram os comunistas,
eu não protestei,
porque, afinal,
eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas,
eu não protestei,
porque, afinal,
eu não era social-democrata.
Quando eles levaram os sindicalistas,
eu não protestei,
porque, afinal,
eu não era sindicalista.
Quando levaram os judeus,
eu não protestei,
porque, afinal,
eu não era judeu.
quando eles me levaram,
não havia mais quem protestasse
Quando retornei ao Brasil, estudando um pouco mais o contexto
daquele poema, deparei-me com outro, de Bertold Brecht:
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo
As pesquisas me conduziram a mais um poema, este produzido no
Brasil, de autoria de Eduardo Alves da Costa, que foi elaborado na época da
ditadura militar e de onde se extrai a passagem que se tornou célebre na luta
democrática instaurada na época do golpe de 64:
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
O que essas manifestações têm em comum? Elas se identificam
pela poética demonstração de que as supressões da liberdade se “desenvolvem”
progressivamente na medida em que encontram espaços para tanto, sendo que estes
espaços são criados pela tática do medo.
Tendo por base esse aprendizado histórico, fácil compreender
que assistimos na USP, presentemente, uma escalada anti-democrática repressora
da liberdade, que avança a partir da estratégia do medo e da desinformação.
Mesmo sem nenhuma pretensão poética, é possível dizer:
Primeiro levaram um sindicalista
E não dissemos nada, pois não somos sindicalizados
Depois levaram, na calada da noite, os aposentados
Não nos importamos, afinal, estamos na ativa
Aí, oficializaram a política da repressão militarizada
E levaram estudantes
Sem entender bem o se passava, não protestamos
Na seqüência, já com armas em punho, levaram mais estudantes
Não reagimos porque não somos mais jovens sonhadores
Então, se conferiram o poder de chamar o golpe de 64 de
Revolução!
Após isso, se sentiram à vontade para assumirem, abertamente,
o projeto de privatização do ensino, ameaçando fechar cursos que não se integram
às exigências do mercado.
Adotaram, de modo cada vez mais explícito e abrangente, a
terceirização, que, como bem sabem, precariza o trabalho e dificulta as
resistências por parte dos trabalhadores.
Não se importaram com as reincidentes agressões desferidas
por Policiais contra estudantes no seio da Universidade e assumiram postura de
que não lhes diz respeito o atentado contra a sede do sindicato dos servidores
– o Sintusp (a que ponto chegamos?)
Passaram a levar a ferro e fogo a intolerância contra os
contestadores. Fiscalizam, invadem a privacidade, institucionalizam a
espionagem.
Instauraram processos administrativos contra os demais
diretores do sindicato.
Têm tratado os conflitos, frutos das revoltas de estudantes e
servidores contra esse estado de coisas, como meros casos de polícia, pois não
se vêem, minimante, constrangidos ao diálogo.
E, claro, não podia faltar, buscaram utilizar os meios de
comunicação em massa para destruir moralmente todos que, não podendo ser presos
ou descartados, ousam a se posicionar, abertamente, contra a situação posta.
Como se vê, é preciso, urgentemente, revelar que está em
curso na Universidade de São Paulo um procedimento típico de regimes
ditatoriais, que, inclusive busca justificativas para seus atos na lei, que é
vista apenas parcialmente, sem se atentar para o contexto geral do ordenamento
jurídico, o qual, vale lembrar, está construído, exatamente, de modo a evitar
que em nome da lei se obstruam as liberdades individuais e a eficácia dos
direitos sociais, tratados, ambos, na Constituição Federal, como direitos
fundamentais.
É necessário ter a exata compreensão do que representa a
racionalidade jurídica, fixada na Constituição, posta a partir dos postulados
dos Direitos Humanos, integrados ao contexto do pacto de solidariedade, com a
exata dimensão de sua representação histórica para o futuro da humanidade, pois
sem essa base teórica bastante consolidada e sem as práticas que decorram de
sua defesa, corre-se o risco do argumento da legalidade ser retoricamente utilizado
a ponto de justificar todo o tipo de barbaridade praticada contra a condição
humana, como, aliás, já se verificou em nosso país.
Urge recordar:
“O presidente da República Federativa do Brasil, ouvido o
Conselho de Segurança Nacional, e:
Considerando que a Revolução Brasileira de 31 de março de
1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou,
fundamentos e propósitos que visavam a dar ao país um regime que, atendendo as
exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem
democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no
combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na
luta contra a corrupção, buscando, deste modo, “os meios indispensáveis à obra
de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a
poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de
que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da
nossa Pátria” (Preâmbulo do Ato Institucional no 1 de 9 de abril de 1964);
Considerando que o governo da República, responsável pela
execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, só não pode
permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem
ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo
brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato
Institucional n. 2, afirmou categoricamente, que “não se disse que a Revolução
foi, mas que é e continuará” e, portanto, o processo revolucionário em
desenvolvimento não pode ser detido;
Considerando que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido
pelo presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir,
votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de
representar “a institucionalização dos ideais e princípios daRevolução“,
deveria “assegurar a continuidade da obra revolucionária” (Ato Institucional no
4, de 7 de dezembro de 1966);
Considerando que, assim, se torna imperiosa a adoção de
medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução,
preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico
e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos
subversivos e de guerra revolucionária;
Considerando que todos esses fatos perturbadores da ordem são
contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando
os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo a adotarem as
providências necessárias, que evitem sua destruição.
Resolve editar o seguinte:
Ato Institucional
(….)
Art. 2º O presidente da República poderá decretar o recesso
do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de
Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando
os mesmos a funcionar quando convocados pelo presidente da República.
(….)
Art. 3º O presidente da República, no interesse nacional,
poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações
previstas na Constituição.
Parágrafo único. Os interventores nos estados e municípios
serão nomeados pelo presidente da República e exercerão todas as funções e
atribuições que caibam, respectivamente, aos governadores ou prefeitos, e
gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixadas em lei.
Art. 4º No interesse de preservar a Revolução, o presidente
da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações
previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer
cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e
municipais.
Parágrafo único. Aos membros dos Legislativos federal,
estaduais e municipais, que tiverem os seus mandatos cassados não serão dados
substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares
efetivamente preenchidos.
Art. 5º A suspensão dos direitos políticos, com base neste
Ato, importa simultaneamente, em:
I. cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II. suspensão do direito de votar e de ser votado nas
eleições sindicais;
III. proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de
segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado.
§ 1º O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos
poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer
outros direitos públicos ou privados.
(….)
Art. 6º Ficam suspensas as garantias constitucionais ou
legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício
em funções por prazo certo.
§ 1º O presidente da República poderá, mediante decreto,
demitir, remover, aposentar ou por em disponibilidade quaisquer titulares das
garantias referidas neste artigo, assim como empregados de autarquias, empresas
públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva
ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando
for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
(….)
Art. 10º Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos
de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e
a economia popular.
Art. 11º Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os
atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos
Complementares, bem como os respectivos efeitos.
Art. 12º O presente Ato Institucional entra em vigor nesta
data, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 13 de dezembro de 1968.
O documento supra, que se trata do Ato Institucional n. 05,
foi assinado por várias pessoas, dentre elas, Luís Antônio da Gama e Silva, um
dos mentores do texto do Ato, o qual antes de ser nomeado Ministro da Justiça,
em 1967, ocupava o cargo de Reitor da Universidade de São Paulo, advindo da
Faculdade de Direito, onde atuava como Professor Catedrático de Direito
Internacional Privado, em vaga hoje pertencente ao Sr. João Grandino Rodas.
Por ocasião do afastamento temporário de Gama e Silva, a
Reitoria, depois de curto tempo nas mãos de Mário Guimarães Ferri, afastado por
questões médicas, acabou sendo assumida pelo professor Hélio Lourenço de
Oliveira, o qual, por não apoiar o regime militar, foi aposentado
compulsoriamente. O Reitor nomeado, em sua substituição, foi o professor da
Faculdade de Direito, Alfredo Buzaid, que, posteriormente, por nomeação de
General Emílio Garrastazu Médici, galgou o posto de Ministro da Justiça, tendo
sido nomeado, para Reitor, o professor Miguel Reale, também oriundo da
Faculdade de Direito.
Não se pode esquecer que no período em questão, com
fundamento no Ato Institucional n. 05, vários professores da Universidade de
São Paulo de orientação social, denominados, por isso, de “subversivos”, foram
aposentados compulsoriamente, dentre eles: Florestan Fernandes, Fernando
Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Elza Salvatori, Bento Prado Almeida Ferraz
Jr., Emília Viotti da Costa, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Isaías Raw,
José Arthur Giannotti, Mário Schenberg, Paulo Alpheu Monteiro Duarte e Paul
Singer, destacando-se o caso de Caio Prado Jr., que foi incluído na lista de
aposentadorias compulsórias mesmo sem ainda ser professor da Universidade,
tendo apenas o título de livre-docente, adquirido junto à Faculdade de Direito.
Não se pode conceber como mero descuido, portanto, ter a
atual Direção da USP nominado de “Revolução” o golpe de 64, ainda mais se
considerarmos que o Reitor, em sua atuação na Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos, de 1995 a 2002, acompanhado de outros dois membros,
dentre eles o General Oswaldo Pereira Gomes, “votou contra a culpabilidade do
Estado pela morte e desaparecimento de vários presos políticos”, sendo que a
declaração de culpa nestes casos (onze, no total) foi adotada pela maioria dos
demais integrantes da Comissão (quatro), conforme denúncia feita por Carlos
Lungarzo, membro da Anistia Internacional.
Concretamente, sem uma reação consciente e esclarecida ao que
se apresenta na atualidade da Universidade de São Paulo, exigindo-se a reversão
do quadro, com a imediata retirada dos processos administrativos contra
servidores e alunos, a readmissão do sindicalista Brandão, o cancelamento do
convênio feito entre a Administração da Universidade e a Polícia Militar (que
instaurou a lógica da repressão militarizada no Campus), a realocação imediata
dos desalojados do CRUSP e a convocação de uma estatuinte para a
institucionalização de procedimentos verdadeiramente democráticos na
Universidade, iniciando-se pela eleição democrática para Reitor e atingindo a
construção de um projeto de uma Universidade verdadeiramente pública, com o fim
do Vestibular, a eliminação das Fundações de direito privado e demais cursos
pagos, o fim da segregação entre servidores e professores, a derrubada de todos
os muros que separam a Universidade da sociedade etc., corre-se o risco de ao
acordamos pela manhã nos depararmos com um novo Ato Institucional publicado no
Diário Oficial.
Importante ressaltar que muitos dos processos administrativos
instaurados contra servidores e alunos têm por base um Decreto de 1972, que
prevê, dentre outros atos puníveis, a prática de atitudes que atentem contra a
moral.
No mínimo, há de se conceber a urgência, na linha das
propostas feitas pelo Prof. Fábio Konder Comparato, da formação de um Comissão
da Verdade para apurar responsabilidades quanto aos atos praticados durante o
regime militar que envolveram a supressão de direitos de servidores,
professores e estudantes da Universidade de São Paulo, criando-se,
concomitantemente, uma sub-comissão para avaliação do conteúdo persecutório dos
recentes processos administrativos instaurados contra estudantes, professores e
servidores.
Cumpre registrar, por oportuno, que foi a instauração do medo
com relação às reformas de base anunciadas pelo Presidente João Goulart,
reforçada pela retórica da “restauração da ordem”, que impulsionou o golpe de
1964, e que assistimos, presentemente, uma escalada de medo semelhante no que
se refere à mobilização cada vez mais organizada dos movimentos sociais, que
buscam a efetivação de direitos constitucionalmente consagrados.
É por isso, ademais, que a intolerância verificada
presentemente na USP a todos diz respeito. Não cabe o argumento de que não se
tem nada com isso, por que, afinal, não se está a ela integrado, pois, como
traduzem os poemas supra, primeiro fazem aqui, depois, por aí. O caso do
Pinheirinho, no qual se utilizou a mesma logística para a retirada dos
estudantes que no final do ano passado ocupavam o prédio da Reitoria, reflete
exatamente isso, sendo oportuno destacar que se avizinha situação semelhante na
comunidade San Remo, situada ao lado da própria Universidade de São Paulo.
Aliás, recentemente foi aprovada no Conselho Universitário uma leva de
contratação de professores temporários, deixando-se clara a política de
diminuição do poder da classe dos professores que vem por aí.
É por tudo isso que a presente reação, com o lançamento do
Manifesto pela Democratização da USP, que tem o propósito de impedir que uma
tal realidade, cujo processo já se iniciou no seio da Universidade, não volte a
atingir a toda a sociedade, representa a mais singela homenagem que se pode
prestar aos parentes e amigos dos cidadãos brasileiros que sofreram danos
irreparáveis por todos aqueles (e não, genérica e impessoalmente, regime
ditatorial) que legitimaram a ditadura e com ela pactuaram, além de constituir
a fórmula mínima de respeito à luta que esses cidadãos implementaram por todos
nós.
É certo que muitas pessoas não querem perceber a gravidade do
momento, seja por se beneficiarem dele, seja por puro comodismo. A questão é:
até quando poderão se calar? E mais ainda: se já não será tarde demais quando
quiserem se manifestar?
Para esses últimos, que precisam sair do mundo dos sonhos,
vale, ainda, o recado há muito deixado por Rosa Luxemburgo:
“Quem não se move não sente as correntes que o prende.”
De todo modo, diante da apresentação deste Manifesto, que
traz insitamente uma demonstração de solidariedade para com os oprimidos do
sistema, provando-lhes que lutar pela defesa da democracia, pela efetivação de
direitos e pela conquista de melhores condições de vida não é crime, e que
representa, igualmente, uma homenagem à produção do saber, que é a razão de ser
de uma Universidade, e à necessária defesa da condição humana, que é a razão de
ser de todos nós, pode-se acreditar que ao menos a comunidade uspiana não vai
se calar e vai continuar se movendo…
Muito obrigado!
Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente da Faculdade
de Direito da USP.
PS do Viomundo: O artigo acima é o texto-base da manifestação
do professor Souto Maior durante o lançamento do Manifesto pela Democratização
da USP, ocorrido na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), em 1º de
março de 2012.
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